Kindred. Neanderthal life, love, death and art de Rebecca Wragg Sykes

 


ANTROPOLOGIA

Neandertais, os humanos solitários

Novas hipóteses sobre o final desta espécie humana mostram que seu desaparecimento está relacionado à maior interconexão dos grupos de ‘sapiens’

Exposição sobre neandertais no museu de Moesgaard, na Dinamarca. Moesgaard Museum
Exposição sobre neandertais no museu de Moesgaard, na Dinamarca. Moesgaard MuseumMICHAEL JOHANSEN

A paulatina aproximação entre os Homo sapiens, os humanos atuais, e os neandertais, do ponto de vista intelectual, mas também genético, foi um dos processos científicos mais desafiantes das últimas décadas. A espécie humana mais próxima, que habitou a Europa e a Ásia durante pelo menos 300.000 anos, deixou de ser um espelho longínquo para se transformar em um reflexo cada vez mais próximo da humanidade moderna. Essa mudança se traduziu em um imparável interesse pelos neandertais, que protagonizam constantes publicações científicas, livros de divulgação e exposições.

Como disse o ensaísta israelense Yuval Noah Harari, “pelo mero fato de ter existido, os neandertais desafiam alguns dos nossos mais apreciados ideais e percepções, nos obrigam a questionar a crença de que o Homo sapiens se ergue como o ápice da criação e o que significa ser humano. E esses assuntos são agora mais urgentes do que nunca”. O autor de Sapiens escreveu estas palavras na crítica no The New York Times do livro Kindred. Neanderthal life, love, death and art (Familiares. A vida, o amor, a morte e a arte dos neandertais), da pesquisadora e arqueóloga britânica Rebecca Wragg Sykes, um sucesso de vendas no mundo anglo-saxão (ainda sem tradução ao português).

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Wragg Sykes tenta resumir em seu livro todos os conhecimentos acumulados sobre os neandertais nas últimas três décadas, um processo que acelerou após, dez anos atrás, uma equipe do Instituto Max Planck de Leipzig dirigida por Svante Pääbo sequenciar seu genoma e descobrir que os humanos atuais têm uma pequena proporção de genes neandertais, o que demonstra que ocorreu hibridação entre as duas espécies. É mais filosófico o livro recente La vida contada por un sapiens a un neandertal (A vida contada por um sapiens a um neandertal), em que o escritor Juan José Millás e o paleoantropólogo Juan Luis Arsuaga, codiretor da Fundação Atapuerca, falam do divino, mas principalmente do humano. Também foi editado El sapiens asesino y el ocaso de los neandertales (O sapiens assassino e o ocaso dos neandertais), do paleontólogo Bienvenido Martínez-Navarro, que se centra no que se mantém como o grande mistério sobre os neandertais: Por que desapareceram?

“Eles nos fascinam pela mesma razão pela que nos fascinam os romances de ficção científica: porque são outra versão de nós”, diz Juan Luis Arsuaga em conversa telefônica. “Tudo indica que têm o mesmo nível intelectual que nós e, entretanto, não são iguais.

Podemos dizer que têm a mesma mente, mas não a mesma mentalidade. Representam outra maneira de ser humano e isso é algo que temos muita dificuldade de imaginar”. Em uma entrevista por videochamada, Wragg Sykes fala o mesmo: “Os neandertais mudaram a percepção de nós mesmos. Na cultura ocidental sempre tentamos nos separar do resto da natureza, demonstrar que somos melhores do que os animais. Os neandertais nos obrigam a repensar isso”.

Kindred perpassa três décadas de descobertas sobre os neandertais, que também coincidem com uma revolução na arqueologia e na genética. A aplicação da química e de sofisticadas técnicas de datação permitiram saber que os neandertais tinham pensamento simbólico ―ainda que não necessariamente artístico―, que dominavam as plantas e a paisagem que os cercava, que eram conscientes do material lítico que utilizavam para diferentes instrumentos, que utilizavam cores, principalmente vermelho e ocre, que enterravam seus mortos e cuidavam dos idosos. Tanto pela presença do gene FOXP2, associado à linguagem, como pelo tipo de animais que caçavam ―abatê-los precisava da cooperação do grupo―, os cientistas consideram que utilizavam alguma forma de comunicação.

Exposição sobre neandertais no museu de Moesgaard.
Exposição sobre neandertais no museu de Moesgaard. MICHAEL JOHANSEN

“Durante a última década, numerosas descobertas mudaram nosso paradigma sobre as capacidades dos neandertais”, diz a pesquisadora dinamarquesa Trine Kellberg Nielsen, professora da universidade de Aarhus e curadora de uma exposição sobre neandertais no museu de Moesgård, especializado em antropologia e pré-história, que estará até o final do ano (o museu está atualmente fechado pela covid-19). “Muitas das coisas que antes atribuíamos somente a nossa própria espécie, como uma cultura visual e um comportamento social, se estendem agora aos neandertais.”

As novas descobertas se acumulam quase a cada mês, até a cada semana. Somente nos últimos sete dias surgiu um estudo, baseado em sedimentos da caverna de Salt ―a Espanha é um dos campos mais férteis no estudo dessa espécie pela quantidade de jazidas―, sobre a presença de microrganismos benéficos na microbiota intestinal dos neandertais e na sexta-feira foi publicada outra pesquisa que pode permitir entender no futuro como seu cérebro evoluiu e influenciou em seu comportamento.

Mas, como disse o escritor britânico John Lanchester em um texto na London Review of Books sobre Kindred, o grande mistério permanece: “Não são uma versão fracassada de nós e a trajetória deles até nós não é teológica. E, entretanto... o fato é que nós estamos aqui e eles, não, e ainda que não exista um propósito na evolução, a questão de por que e como aconteceu isso continua sendo apaixonante”. A data é a única coisa que se sabe: há 40.000 anos, quando os sapiens começaram a avançar pela Europa, os neandertais desaparecem do registro fóssil.

Alguns pesquisadores afirmam que ainda permaneceram alguns milênios no sul da península ibérica, em duas cavernas em Gibraltar, mas são datações ainda polêmicas. Em seu livro, Bienvenido Martínez-Navarro aposta em uma explicação baseada principalmente na luta pelos recursos. “Competíamos pelos mesmos recursos no mesmo território” diz, sem descartar de modo nenhum a violência. Mas não é a hipótese mais difundida entre os especialistas. Arsuaga, por sua vez, acha que a chegada do Homo sapiens em circunstâncias extremas ―o começo de uma glaciação― foi determinante. “Em um momento crítico, a espécie que teve menos problemas é a que prevaleceu”.

Rebecca Wragg Sykes adianta em Kindred uma hipótese nova, baseada em estudos genéticos e químicos das ferramentas que as duas espécies utilizaram. “Sabemos pela genética que não havia muita diferença no número de indivíduos, mas também que os grupos de Homo sapiens estavam muito mais interconectados. Se consideramos que se encontravam em um momento em que as condições climáticas estavam se deteriorando rapidamente, quando se conta com uma rede de contatos é mais fácil se mover a outros lugares e pode ser que os neandertais não tivessem isso. Sabemos pela arqueologia que não havia grandes diferenças entre o que comiam e sabemos que os Homo sapiens desse período já tinham armas para caçar à distância, lanças, flechas, sistemas para lançar dardos, e os neandertais não”. Seu final foi uma mistura de desvantagens tecnológicas, mudança climática e sociabilidade. Mas, uma vez que os humanos não africanos têm entre 1% e 4% de genes neandertais, nunca houve na história tanto material genético da espécie extinta circulando pelo planeta. Wragg Sykes afirma: “Eles nos demonstram que na Terra existiu mais de uma forma de ser humano”

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